No dia 16 de maio de 2001, tropas da Polícia Militar da Bahia (PM-BA) reprimiram estudantes que estavam mobilizados em um ato pela cassação dos então senadores Antônio Carlos Magalhães (1927-2007) e José Roberto Arruda devido ao caso que ficou conhecido como O Escândalo do Painel do Senado. As imagens chocaram pela violência com uma agravante: a repressão aconteceu no campus da Universidade Federal da Bahia (Ufba), sediado no Canela, uma área que por lei estava fora do campo de atuação da polícia estadual. Esta ação e seus desdobramentos amplificaram as tensões que vinham ocorrendo há meses no cenário político nacional.
“Os soldados dispararam bombas de gás e investiram contra a multidão, estimada em cerca de cinco mil pessoas, deixando pelo menos 18 estudantes feridos. Na perseguição aos manifestantes, a PM invadiu os prédios de várias faculdades. Reunido, à noite, o Conselho Universitário da Ufba repudiou a violência policial”. (A TARDE 17/5/2001, capa).
O trecho citado integra a chamada da capa da edição de A TARDE do dia seguinte, que trouxe uma ampla cobertura da invasão do campus da Ufba sob vários aspectos: repercussão política, protestos de entidades de defesa dos direitos, dentre outras.
Mas esta ocorrência tem conexões com o ano anterior. Em junho, ACM, então presidente do Senado, conduziu a sessão que decidiu pela cassação do senador Luiz Estevão (PMDB- -DF). Este episódio acentuou a guerra que estava sendo travada entre ACM e o PMDB, que culminou em uma disputa acirrada para a sua sucessão na presidência da casa legislativa. O conflito tinha como pano de fundo a disputa por mais espaço no governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC).
A briga opôs dois pesos-pesados da política: ACM, que era do PFL, e Jáder Barbalho, do PMDB. Os dois protagonizaram uma troca de ofensas no plenário, que se tornou célebre, com a troca de acusações sobre corrupção. Jáder disputou a sucessão do adversário na presidência do Senado e derrotou Jefferson Peres, do PDT, e Arlindo Porto, do PTB, candidato de ACM. O final da eleição não abaixou a temperatura e a guerra continuou.
Em uma visita a procuradores da República para apresentar denúncias contra seus adversários, ACM insinuou que sabia como os senadores tinham votado na sessão que culminou na cassação de Luiz Estevão. Como o voto havia sido secreto, a conversa, que foi gravada pelo procurador Luiz Francisco de Souza, resultou em investigação no Conselho de Ética do Senado por quebra de decoro parlamentar.
Protagonismo
Com a maior liderança política baiana em situação de fragilidade, os grupos de oposição ao carlismo na Bahia iniciaram protestos. No início da década de 2000, o movimento estudantil em Salvador tinha uma impressionante força política. O Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Ufba estava empenhado no movimento de defesa das universidades públicas sob a avaliação de que a política econômica do governo de FHC ameaçava seriamente o funcionamento dessas instituições com o risco de privatizações, inclusive. Foi nesse contexto que a Faculdade de Direito da Ufba ganhou um protagonismo que a fez o principal alvo da invasão ao campus, na avaliação do advogado, professor, músico e mestre em direito público José Amando Júnior, que participou ativamente do movimento.
“Tem um conjunto de elementos que se combinam e até parece uma conspiração das forças do universo, como foi nesse caso”, diz Amando Júnior. De acordo com ele, nesta fase dos movimentos de defesa das universidades públicas, a Faculdade de Direito foi a sede de muitos dos encontros do movimento estudantil tanto no âmbito universitário como secundarista.
“Uma das bandeiras do movimento era a realização de concurso público para professor. A Faculdade de Direito, por exemplo, parecia isolada. Então foi uma forma de integrá-la ao processo dos debates”, acrescenta. Graduado há apenas dois meses no período da invasão e pós-graduando, José Amando Júnior estava como professor substituto da instituição. “O déficit de professores era impressionante naquele período”, diz.
Articulados aos debates nacionais, os estudantes aderiram aos protestos que pediam a cassação de ACM e de Roberto Arruda, que era o líder do governo federal na época da votação sobre o mandato de Luiz Estevão. Arruda foi apontado como o autor da ordem para impressão da lista de votação. Também chegaram a pedir a cassação de Jáder Barbalho.
Em 10 de maio, os estudantes participaram de uma passeata que pedia a cassação dos senadores. As divergências comuns em movimentos também já estavam instaladas: “Parte do grupo mais ligada aos políticos com mandatos defendiam a ida para o centro da cidade. Já outra parte do grupo queria seguir até a Graça para fazer um protesto na porta do prédio onde ACM morava” acrescenta Amando Júnior.
Essa divergência foi o epicentro do primeiro enfrentamento entre estudantes e policiais militares registrado na edição de 11 de maio de 2001 com o status de manchete da edição e repercussão dos desdobramentos em páginas internas.
“Em frente à Casa D’Itália ocorreu um momento de indecisão dos manifestantes. A passeata, que deveria seguir em direção ao bairro da Graça, conforme havia sido decidido pelo Diretório Central dos Estudantes (DCE da Ufba), acabou sendo forçada, por líderes que estavam no carro do som, a seguir na direção da Piedade”. (A TARDE 11/5/2001, p. 3).
Com a mudança de roteiro, os estudantes passaram a ser atacados pela polícia:
“Policiais do Batalhão de Choque dissolveram, a golpes de cassetete e bombas de gás de pimenta a passeata organizada por estudantes universitários e secundaristas, na manhã de ontem, no centro da cidade, pela cassação dos senadores Antonio Carlos Magalhães (PFL), José Roberto Arruda (sem partido) e Jáder Barbalho (PMDB) e a instalação da CPI da Corrupção”. (A TARDE 11/5/2001, p. 3).
A partir desse episódio, o movimento estudantil passou a seguir o próprio caminho. Tanto que no dia 15 de maio houve uma manifestação organizada por parlamentares. Já os estudantes, sob a liderança do DCE da Ufba, marcaram o seu protesto para o dia seguinte.
Na edição do dia 14 de maio, A TARDE publicou dois textos sobre os protestos agendados e a busca de proteção legal. José Amando Júnior integrou a comissão que visitou a redação de A TARDE para fazer o anúncio da agenda do movimento estudantil e da iniciativa para garantir proteção legal. “Foram dias muito tensos. O nosso objetivo era garantir tranquilidade com as ações para proteção. Mas chegaram a ligar para o meu pai e dizer que ele deveria me convencer a não ir para o protesto no dia 16”, conta José Amando Júnior. Seu pai é o ex-deputado José Amando, falecido em 2005, que presidiu a Assembleia Legislativa da Bahia de 1989 a 1991.
Registro
Os acontecimentos anteriores cercaram de tensão o protesto estudantil marcado para o dia 16 de maio. A Faculdade de Direito da Ufba foi o ponto de encontro dos grupos de outras unidades e dos colégios públicos e particulares. Mas uma vez o roteiro da manifestação foi o estopim para o conflito:
“Impedidos pela polícia de prosseguir pela Vitória, os manifestantes se dirigiram para o Vale do Canela, imaginando evidentemente que gozariam da “imunidade federal da Ufba” e chegariam à Graça, por um atalho. Quando desciam pela antiga Faculdade de Comunicação notaram a presença ostensiva da PM, que já havia cercado o viaduto, na direção da Faculdade de Direito e também a descida para o Vale do Canela”. (A TARDE, 17/5/2001, p. 3).
De acordo com Amando Júnior, os estudantes não queriam conflito. Tanto que três professores da Faculdade de Direito tentaram mediar o impasse: o juiz federal Wilson Alves de Souza, o procurador federal Arx Tourinho e o ex-secretário da Segurança Pública Sérgio Habib. Em suas alegações eles apontaram para os comandantes das tropas a concessão de um habeas corpus pelo juiz federal Márcio Flávio Mafra Leal e mandados de segurança.
O impasse parecia que ia ser resolvido com a chegada de duas viaturas da Polícia Federal, que foi interpretada pelos estudantes como a última cartada para fazer cumprir a decisão da Justiça de passagem livre para o protesto com o roteiro desejado. Mas o que se viu foi o cenário de horror descrito pela reportagem de A TARDE:
“Os jovens corriam das bombas, que eram atiradas do alto até o Vale do Canela, para onde se dirigia uma parte dos manifestantes. Policiais correram atrás de todos, provocando a reação dos estudantes, que neste momento começaram também a atirar pedras contra o cordão dos PMs. O corre-corre e as bombas explodiram por muito tempo, paralisando o trânsito no Vale do Canela, na Graça e na Federação. O espetáculo era o de uma guerra civil, com os estudantes fechando as ruas com pedaços de pedra e caixas de lixo, às quais ateavam fogo, para impedir o acesso dos carros da Choque, que atiravam bombas de efeito moral e de gás lacrimogêneo, inclusive no interior das faculdades”. (A TARDE, 17/5/2001, p. 3).
O registro dessas cenas foi feito pelo jornalista Kau Rocha e resultou no documentário Choque. O filme se transformou em uma referência sobre esse episódio. Rocha já havia terminado o curso de jornalismo, mas continuava acompanhando mobilizações sociais, incluído o movimento estudantil onde esteve inserido durante o seu período no ensino médio.
O que foi um trunfo no momento quase inviabiliza a edição do documentário. Na era do largo uso do VHS, Rocha filmou as cenas com uma câmera digital, ainda uma novidade. “Como ela era pequena, não chamou a atenção dos policiais, mas depois eu não conseguia editar porque era necessária uma ilha de edição específica”, relata.
Em um evento encontrou Sérgio Brito, que tinha o equipamento adequado. Edição feita e o documentário, para usar uma linguagem da atual era das redes, “viralizou”. Com uma versão convertida para VHS, Rocha conta que circularam, imediatamente ao lançamento, cerca de duas mil fitas. “Foi uma loucura. O filme passou a ser usado por professores no ensino médio como também em cursinhos preparatórios para a entrada no ensino superior. Ainda hoje ele é bastante procurado”, completa.
Resultados
A indignação sobre a repressão aos estudantes continuou repercutindo: o Conselho Universitário da Ufba divulgou uma carta de protesto. O então ministro da Educação, Paulo Renato de Souza, criticou a ação da PM baiana. No dia seguinte, a reitoria da Ufba sediou o ato de repúdio à invasão do campus. Na passeata realizada após a cerimônia, o reitor da Ufba, Heonir Rocha, marchou ao lado dos estudantes, que puderam, com tranquilidade, chegar até a Graça e realizar o que desejavam desde o início: a lavagem da calçada do prédio onde morava o senador ACM.
No dia 30 de maio do mesmo ano, ACM renunciou ao mandato de senador, mas avisou que voltaria, como realmente aconteceu nas eleições de 2002. Roberto Arruda também renunciou.
Já o movimento estudantil transformou-se e abriu espaço para novas estratégias. Em 2003, de forma espontânea, sem uma articulação inicial com as instituições representativas, estudantes conseguiram parar a cidade em protesto ao aumento no preço da passagem dos coletivos. O movimento, que ficou conhecido como “Revolta do Buzu”, produziu desdobramentos impactantes no tabuleiro da política baiana. Brevemente ele deverá aparecer por aqui como protagonista.
A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período. Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE. Para saber mais: Documentário Choque, de Kau Rocha: https://www.youtube. com/watch?v= vbBU3ytINIs.
fonte: Atarde
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